Pesquisa e desenvolvimento de produto em quatro comunidades piscatórias
As pessoas que conhecemos no decorrer deste trabalho têm uma relação particular com as coisas, o entorno, a natureza, e a natureza das coisas. Foi o primeiro que entendemos: que há outra realidade para além do que se vê, ouve e faz. Como o pescador que lê a profundidade do mar olhando a superfície.
Essa sensibilidade reflete-se na forma como se desenvolve uma cultura material nos lugares onde vivem e trabalham os pescadores. Onde ao início víamos lixo e despojo, descobrimos armazéns de potenciais “outras coisas” ou materiais de onde se farão outras ainda. A criatividade que obriga, no mar, a saber para além do que se vê, em terra também se aplica. Todas as coisas podem ser outras coisas. Um bidão pode ser um vaso, um alguidar pode ser um aparelho, uma garrafa de plástico pode ser um lastro ou boia. A esta visão junta-se a capacidade de fazer com o que se tem à mão — a arte do desenrascanço. Nestas comunidades, que não têm mais de 70 anos, a escassez de bens materiais, mesmo os naturais como a madeira, assemelha-se àquela vivida numa embarcação, onde qualquer necessidade tem de ser resolvida com os meios disponíveis a bordo. Esta criatividade obrigada, juntamente com a destreza necessária para as artes da pesca — redes, nós e aprestos — estará na origem de tanta aptidão e tanto engenho. Porque os artefactos que encontramos transformados, para lá de uma visão, têm arte, têm saber e não respeitam regras — são livres. A lei aqui é a maré, o sol e a sorte.
Chegámos a estas comunidades expectantes por encontrar materiais naturais, objectos autóctones e uma memória colectiva, mas estas coisas não fazem parte deste universo à beira-mar. Em vez disso, há um modo individual de fazer, de resolver, de acabar um apresto. Onde as soluções, apesar de terem a mesma essência funcional, têm resultados diferentes, com cores, nós, formas e melhorias.
O modo livre, espontâneo e consciente de usar materiais e produzir artefactos é a especificidade que define a cultura material destes portos e comunidades piscatórias. Como, mesmo respeitando certos códigos culturais, se cria de forma independente e autónoma, livre de regras formais ou estéticas, e respondendo somente ao imaginário individual de quem faz.
Este “engenho do improviso”, que funde constantemente a beleza natural do lugar e a beleza sintética dos materiais, foi o que mais nos marcou e acabou por orientar todo o processo. E, possivelmente, não nos abandonará mais.